A exclusão começa pelas calçadas

Tem coisa mais democrática do que uma calçada bem feita? A resposta deveria ser “não”. Mas basta tentar caminhar por qualquer cidade brasileira para perceber que, na prática, elas estão longe de garantir igualdade de acesso. Quando existem, as calçadas mais se parecem com trilhas de obstáculos, ora estreitas, ora mal conservadas, comumente tomadas por buracos, postes, degraus improvisados e colocados em qualquer lugar. Para uns, isso causa desconforto. Para outros, simplesmente é o fim do caminho.

Os dados do Censo de 2022 não deixam dúvidas: de 174,2 milhões de pessoas que vivem em áreas urbanas no Brasil, quase 70% — ou 119,9 milhões — moram em ruas sem rampas nos pontos onde deveriam atravessar com segurança. Se eu estiver empurrando um carrinho de feira, se você estiver de muletas após um acidente, ou se alguém estiver acompanhando um idoso com mobilidade reduzida, simplesmente… não atravessamos. É verdade que houve melhora desde 2010, quando 95% das pessoas viviam nessa condição. Mas ainda estamos falando de sete em cada dez brasileiros urbanos sem o básico para se locomover com autonomia.

Mais preocupante ainda é descobrir que apenas 32,8 milhões de pessoas (18,8%) vivem em vias com calçadas livres de obstáculos. Isto significa que, para mais de 80% dos brasileiros em áreas urbanas, o simples ato de caminhar pela cidade é uma experiência repleta de barreiras. Quando se fala em acessibilidade, é possível afirmar que a exclusão urbana começa no chão da cidade. É pelas calçadas que a cidade separa quem pode de quem não pode circular. E não são só pessoas com deficiência que sofrem com isso: somos todos nós ou ainda, crianças, idosos, gestantes, quem usa bengala, carrinho de bebê, anda com sacolas ou simplesmente tem um joelho operado ou uma torção no pé. A cidade, assim, deixa de ser um lugar de convivência e vira um teste de equilíbrio.

O que pouca gente percebe é que a calçada é essencialmente infraestrutura de mobilidade. Como qualquer infraestrutura urbana, ela deveria ser planejada, executada e mantida pelo poder público municipal. Ao morador, ao comerciante, ao munícipe, cabe apenas usá-la e conservá-la — nunca construí-la. Quando transferimos a responsabilidade de construção para os proprietários dos imóveis, criamos inevitavelmente um padrão fragmentado: pisos irregulares, degraus improvisados, raízes que rompem o pavimento, lixeiras obstruindo a passagem e postes instalados justamente onde mais atrapalham o fluxo de pedestres. Que departamento, secretaria ou órgão municipal seria capaz de fiscalizar efetivamente esse patchwork desconexo de pisos, níveis e condições em cidades como São Paulo com 12 milhões de habitantes? Pessoalmente, considero inviável.

A falta de acessibilidade impacta a vida das pessoas. Ter uma calçada com obstáculos pode impedir alguém de sair de casa, podendo ser o limite entre conseguir ir trabalhar ou não. Entre estudar ou ficar em casa. Entre viver a cidade ou ser trancado por ela. A cidade e suas calçadas viram obstáculos na vida do cidadão. É curioso como criamos uma cidade onde o simples ato de caminhar, o modo mais básico e democrático de locomoção, tornou-se um privilégio para poucos. Não se trata apenas de conforto, mas de um direito fundamental: o direito de ir e vir, de acessar serviços, de participar da vida urbana.

O grande equívoco está em como encaramos as calçadas. No Brasil, elas são tratadas como apêndices das edificações, sob responsabilidade de cada proprietário. É como se construíssemos uma rodovia onde cada proprietário de terreno adjacente definisse as características do asfalto em frente à sua propriedade, impensável, não? Mas é preciso mudar a lógica: calçada não é apêndice urbano. É caminho, é acesso, é política pública.

Calçadas são artérias vitais da mobilidade urbana, tão essenciais quanto avenidas, pontes ou viadutos. Quando o poder público municipal assume sua verdadeira responsabilidade, que a de planejar, construir e manter esses espaços com padrões contínuos e design universal, a cidade se transforma e melhora a vida das pessoas. Em diversas metrópoles e cidades pelo mundo onde o poder público responsabiliza-se pelo projeto das calçadas em sua totalidade, incorporando-as de fato aos planos de mobilidade e não apenas em normas e regulações, o resultado é visível: o pedestre deixa de ser coadjuvante para tornar-se protagonista do planejamento urbano. 

Aos munícipes, cabe utilizar as calçadas com civilidade e empatia pelo outro: não estacionar veículos sobre elas, não instalar lixeiras ou objetos fixos que obstruam a passagem, nem transformá-las em extensão de propriedades privadas. E, mais do que isso, é dever de todos cobrar das autoridades que assumam sua responsabilidade de fiscalização sobre esse espaço público.

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A exclusão social se manifesta de muitas formas, mas poucas são tão concretas quanto a impossibilidade de usar as calçadas. É uma exclusão literal, pois ela define quem pode e quem não pode circular pela cidade. Quando 80% da população urbana vive com calçadas obstruídas, estamos normalizando a exclusão da maioria. Uma cidade que não garante o direito básico de caminhar com segurança e autonomia está falhando em sua missão mais elementar. É como se a exclusão começasse pelo chão. E o chão, é público. Enquanto nossas calçadas continuarem sendo território hostil para tantos cidadãos, nosso projeto de cidade permanecerá incompleto e desigual.

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