Senado compra programa de reconhecimento facial por IA considerado controverso por especialistas; entenda

Aplicativo coletou, sem consentimento, mais de 50 bilhões de imagens na internet. Empresa é alvo de disputas judiciais no exterior e pode ferir lei brasileira de dados, avalia jurista. O Senado oficializou em novembro a compra de uma licença para utilizar um programa de identificação de pessoas baseado em inteligência artificial.
O sistema “Clearview AI”, criado pela empresa americana de mesmo nome, será fornecido por uma representante nacional com sedes em Belo Horizonte (MG) e Brasília (DF).
O programa é considerado, por especialistas em tecnologia, como um dos mais populares e problemáticos no mundo por ter coletado, sem consentimento, bilhões de imagens na internet (entenda mais abaixo).
A ferramenta deverá ser utilizada por agentes da Polícia do Senado.
O software, na prática, potencializa a identificação de pessoas. Por meio da comparação de fotografias de um rosto e registros em um banco de dados, o aplicativo permite reconhecer um indivíduo, indicando, por exemplo, nome e perfis em redes sociais.
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➕ O Clearview AI não funciona em tempo real. Especialistas afirmam que o aplicativo não é, portanto, uma ferramenta de vigilância. O programa entra em campo na fase de investigação, depois que um crime ou evento acontece.
O Senado comprou a licença de utilização do programa por R$ 87.680, sem licitação — medida justificada por haver somente um representante da Clearview AI no Brasil.
A contratação atendeu a um pedido da Secretaria de Polícia do Senado.
Ao justificar a pertinência da compra, o órgão afirmou que a ferramenta vai “suprir” uma “lacuna” na capacidade de resposta a infrações.
Segundo o contrato, a empresa deverá assegurar à Casa consultas ilimitadas no programa, além de treinamento operacional e suporte. O negócio será válido até novembro de 2025 e poderá ser renovado.
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Controvérsia dos dados
A origem do banco de dados é responsável pela polêmica em torno da plataforma.
O arquivo é totalmente formado por imagens e dados coletados — sem autorização dos donos — em sites, redes sociais, fotos e outras diversas fontes públicas disponíveis na internet.
Significa dizer que você, o leitor desta reportagem, provavelmente pode ter tido imagens coletadas.
Em seu site, a Clearview AI afirma que este é o “maior banco de dados” do mundo e que a taxa de precisão do sistema é superior a 99%.
Mais de 50 bilhões de imagens abastecem o sistema, segundo dados da empresa que atende órgãos de segurança de diversos países.
🔎 O número seria suficiente para reunir cerca de seis fotos de cada ser humano atualmente vivo no planeta, segundo estimativa populacional das Nações Unidas.
Sob o argumento de que a coleta de imagens violou o direito à privacidade de usuários, a fonte dos registros se tornou o centro de diversas disputas judiciais envolvendo a empresa ao redor do planeta.
A briga judicial de maior destaque tem ocorrido nos Estados Unidos. Em Chicago, um tribunal federal julga uma ação coletiva que pode terminar, em janeiro de 2025, com acordo para que a empresa assegure percentual de ações — ou receita — a americanos que se sentiram lesados.
Em paralelo às disputas jurídicas, nos últimos anos, grandes empresas de tecnologia — Meta e Google, por exemplo — pediram que a Clearview AI parasse de captar dados em suas plataformas.
O que é a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)?
Filtro inicial
A Polícia do Senado afirmou, em documento que justifica a contratação, que a inteligência artificial será utilizada “apenas como filtro inicial de pessoas” e que agentes reais — de carne e osso — seguirão como analistas para confirmar informações do sistema.
Os policiais legislativos são responsáveis por apurar infrações penais ocorridas nas dependências da Casa ou contra bens, serviços e interesses do Senado.
Também cabe ao órgão garantir a segurança e integridade física de pessoas e do patrimônio.
Segundo a polícia, o uso de IA vai permitir uma “identificação rápida e precisa de pessoas de interesse”.
“Incrementando, em última análise, a segurança geral para os frequentadores do Senado Federal (sejam autoridades, servidores, colaboradores ou visitantes) e para o patrimônio público”, justificou.
No documento, o órgão mencionou a depredação de vândalos golpistas em 8 de janeiro de 2023 como um caso em que a ausência de mecanismos ágeis dificultou a localização de suspeitos.
A demora, de acordo com a polícia, criou uma “sensação de ineficiência dos aparatos policiais, tendo em vista a impunidade lastreada no anonimato da multidão”.
Proteção de dados
Especialistas em direito digital e IA avaliam que o uso da ferramenta contratada pelo Senado pode ir contra a legislação que protege dados no Brasil — a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Isso porque a lei estabelece que o dono de um dado tem de consentir com a finalidade de uso das informações por uma empresa.
Qualquer utilização fora das hipóteses previstas é considerada inadequada e passível de punição.
As grandes empresas de tecnologia, que tiveram dados coletados pela Clearview, já afirmaram que a criação do banco de dados da empresa violou políticas e termos de uso das plataformas. Segundo elas, todo esse processo ocorreu sem consentimento.
Professor de Direito Digital na Fundação Getúlio Vargas (FGV), o advogado Luiz Augusto D’Urso afirma que, para oferecer serviços no Brasil, mesmo sendo estrangeira, a Clearview AI tem de se adequar às regras da LGPD.
“Vale dizer: mesmo o dado estando disponível na internet, que seria o rosto das pessoas, não é permitido, pela LGPD, que as pessoas simplesmente utilizem essa informação para reconhecimento facial”, diz.
O contrato firmado pelo Senado estabelece que a empresa contratada terá de assegurar que dados coletados na Casa seguirão regras da Lei Geral de Proteção de Dados.
Também deverá se comprometer a manter em sigilo dados pessoais compartilhados com a plataforma.
Há ainda duas regras que terão de ser seguidas pela empresa contratada:
adequação de procedimentos internos à LGPD; e
obrigação de comunicar, em até 24 horas, eventuais violações aos dados.
Apesar disso, o advogado lembra que, juridicamente, ainda não há pacificação em torno de sistemas de reconhecimento facial.
“A tecnologia, eu entendo ser possível ser utilizada para investigações policiais. Agora, outra coisa é a origem do banco de dados.”
Luiz Augusto D’Urso afirma, ainda, que tudo indica que, por não ter autorização do titular dos dados para a coleta das fotos, os registros armazenados pela Clearview AI estariam em desconformidade com a LGPD.
“De acordo com o que se sabe da origem desses dados, entendo que o Senado não deveria utilizar esse banco de dados. Inclusive esse contrato e tratamento poderiam ser questionados pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados [ANPD], que tem o dever de fiscalizar não só empresas privadas, mas também órgãos públicos”, avalia.
O que diz o Senado
Procurado pelo g1, o Senado não respondeu — de forma direta — se a Casa avalia que o aplicativo está dentro das regras previstas na lei de proteção de dados.
A Casa se limitou a dizer, em nota, que o contrato “inclui obrigatoriamente cláusulas que garantem a observância das disposições da Lei Geral de Proteção de Dados”.
“Assegurando assim a proteção dos direitos fundamentais de liberdade e desenvolvimento da personalidade. A previsão de cláusula que garanta o correto uso da informação, mais do que uma exigência legal, é o equilíbrio entre a atividade policial e a garantia de privacidade”, acrescentou.
O Senado afirmou, ainda, que uso de ferramentas de reconhecimento facial é “uma prática já adotada por outras instituições públicas no Brasil”, listando, por exemplo, o Ministério da Justiça e Polícia Federal.
“O intuito de uso do Clearview AI é unicamente atuar como uma ferramenta que organiza informações disponíveis em fontes abertas na internet, sendo utilizado para fortalecer as ações de inteligência e segurança pública, auxiliando na análise de ameaças que possam atingir o Senado Federal”, declarou a Casa na nota.

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